sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Filosofia da Informática, por Marilena Chauí


Marilena Chauí

Numa Obra intitulada A sociedade informática, o pensador Adam Schaff se refere à “revolução da microeletrônica” e nota que, mesmo sem nos darmos conta, estamos rodeados por ela, desde os pequenos objetos de uso cotidiano, como o relógio de quartzo, a calculadora de bolso e o telefone celular, até os computadores e os vôos espaciais. Menciona também a “revolução na microbiologia”, com a descoberta do código genético dos seres vivos, da qual seguiu a engenharia genética, que pode alterar o código genético das plantas, animais e seres humanos. Menciona ainda a “revolução da energia nuclear”, obtida mediante a fissão e fusão controladas de átomos, podendo propiciar aos humanos recursos energéticos praticamente ilimitados, embora tenha sido prioritariamente usada para fins militares. Schaff denomina essas grandes mudanças de “segunda revolução técnico-industrial”, escrevendo:

Trata-se da segunda revolução técnico-industrial. A primeira, que pode ser situada entre o final do século XVIII e início do século XIX e cujas transformações ninguém hesita em chamar de revolução, teve o grande mérito de substituir na produção a força física dos homens pela energia das máquina (primeiro pela utilização do vapor e mais adiante sobretudo pela utilização da eletricidade). A segunda revolução, a que estamos assistindo agora, consiste em que as capacidade intelectuais do homem são ampliadas e substituídas por autômatos que eliminam com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços.

O ponto importante assinalado por Schaff é a diferença entre os antigos objetos técnicos – que ampliavam a força física humana – e os novos objetos tecnológicos – que ampliam as forças intelectuais humanas, isto é, as capacidades do pensamento, pois são objetos que dependem de informações. De fato, os computadores realizam de modo extremamente rápido operações lógicas que um ser humano levaria muito mais tempo para realizar; possui também uma memória muito superior à melhor memória humana; e está organizado de maneira a autocorrigir a maior parte das falhas e dos enganos que cometer numa operação ou num processo. São os robôs ou autômatos propriamente ditos.

Como a palavra informática indica, os novos objetos tecnológicos produzem e transmitem informações. É nesse sentido que dizemos que seu modelo não é a força física nem mecânica e sim mental ou cerebral.

Computadores controlam as armas e operações militares, os vôos espaciais, as operações de aeroportos, de bancos e bolsas de valores, de sistemas urbanos de tráfego e de segurança, de edifícios denominados “inteligentes”, além de setores inteiros do trabalho industrial e da produção econômica. Estão presentes nos carros de último tipo, nos estabelecimentos comerciais que vendem no atacado e no varejo, nos setores administrativos das instituições públicas e privadas. Encontram-se nas escolas e fazem parte do sistema de ensino e aprendizado dos países economicamente poderosos. Estão presentes nas editoras e produtoras gráficas, nos escritórios de engenharia, arquitetura e advocacia; nos consultórios médicos e hospitais; nas produtoras cinematográficas, fonográficas, televisivas e radiofônicas. Tornaram-se instrumentos de trabalho dos escritores, artistas, professores e estudantes, além de operar como correio e como lazer e entretenimento.

Benjamim falara nos efeitos da reprodução das obras de arte (pelos livros, pelo rádio e pelo cinema). McLuhan previra o término da “galáxia Gutenberg” (isto é, o mundo do livro impresso) com o advento da televisão. Ambos sublinharam as potencialidade de uma difusão cultural sem precedentes, na medida em que os novos meios de comunicação tornaram acessíveis as produções culturais do mundo todo. Esse mesmo efeito pode ser visto com a informática: temos, hoje, acesso imediato a museus inteiros, bibliotecas inteiras, jornais completos em praticamente todas as línguas, disponíveis nos banco de dados informatizados.

A informática opera com o que David Harvey chamou de “compressão espaço-temporal”. De fato, o modo de produção capitalista sempre se baseou no poder econômico sobre o espaço (a propriedade do território pelas empresas privadas e pelos Estados) e sobre o tempo (o controle do tempo socialmente necessário para a produção, distribuição e circulação das mercadorias e de retorno, sob a forma de lucro, do capital investido), mas, atualmente, esse poder agigantou-se porque a tecnologia eletrônica reduz distâncias (comprime o espaço) e porque o retorno do lucro ao capital investido é rapidíssimo (comprime o tempo). A esse respeito, escreve Mcluhan:

No decorrer das eras mecânicas, estendemos nosso corpo no espaço. Hoje, porém, passado mais de um século de tecnologia eletrônica, estendemos o nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abolindo, no tocante ao nosso planeta, tanto o espaço como o tempo.

Ou seja, durante a primeira e a segunda revoluções industriais, o corpo humano estendeu-se no espaço, primeiro com o telescópio, o microscópio e as máquinas a vapor (nos transportes e nas fábricas), o telégrafo, o telefone, o rádio, o cinema e a televisão. Mas agora, com os satélites e a informática, é nosso cérebro ou nosso sistema nervoso central que, por meio das novas máquinas, se expande sem limites, diminuindo distâncias espaciais e intervalos temporais até abolir o espaço e o tempo.

A informática e os satélites colocam o universo on-line durante 24 horas, sem serem impedidos por distâncias e diferenças geográficas, sociais e políticas nem por distinção entre o dia e a noite, ontem, hoje e amanhã. Tudo se passa aqui, como se vê nas chamadas “salas de bate-papo”, em que é possível conversar com pessoas de outro extremo do mundo cuja presença é instantânea; e tudo se passa agora, como se vê nas grandes operações financeiras feitas num piscar de olhos entre empresas ou entre bancos situados nos confins da Terra, embora seus fusos horários sejam completamente diferentes.

Examinaremos alguns aspectos culturais da informática.
1. O computador nunca erra.

Num livro intitulado O que é informática, Ângelo Soares examina o “mito do computador bom”: a idéia mágica de uma máquina que resolve tudo simplesmente com o apertar de um botão, sem nunca errar:

Essa visão mágica do computador é criada nas pessoas e contribui para a construção de um mito: o mito do computador bom. O computador é um ‘ser onipotente’, bom, racional, eficiente, que pensa e resolve todos os problemas apresentados a ele, de forma imparcial, investido de um alto grau de justiça, sem nunca errar. (...) A informática aparece, então, como a chave de um mundo eficiente, infalível, feliz, onde o trabalho será reduzido e o lazer aumentado.

Além disso, a propaganda comercial, bem como a literatura, o cinema e a televisão alimentam esse mito ao apresentar computadores que falam, ouvem sentem, têm vontade, são movidos por sentimentos e emoções, são mais ponderados que os seres humanos (tanto assim que costumam impedir e evitar guerras) e, se erram ou falham, é por alguma interferência indevida de algum ser humano mal-intencionado. A humanização do computador é um dos temas do filme 2001 – Uma odisséia no espaço, no qual o computador HAL 9000 sofre uma “crise nervosa” porque não pode mentir; ou do filme O homem bicentenário, em que o computador é dotado de sentimentos, passa a amar e deseja ser humano, isto é, envelhecer e morrer; ou, enfim a história de Pinocchio no ano 2001, isto é, o computador-criança em disputa com a criança humana pelo amor da mãe, no filme Inteligência artificial.

Como observa Soares, a visão mágica oculta o fato de que o computador é uma máquina e, como tal, produzida, programada, conservada e operada por seres humanos. Há, portanto, trabalho industrial para produzir a máquina e trabalho intelectual e manual de analistas de sistemas (que levantam as necessidades dos usuários), programadores (que elaboram o conjunto de instruções que definem o que e como a máquina vai realizar as operações desejadas pelo usuário), operadores (que ligam e desligam as máquinas, reparam seus defeitos, etc.), preparadores de dados (responsáveis pela elaboração ou recepção e emissão de dados) e digitadores (responsáveis pela entrada de dados no computador). Há pelo menos 35 tipos de trabalhos humanos necessários para que um computador opere.

2. A linguagem informática.
Embora haja indústrias produtoras de computadores na Europa e na Ásia, predominam no Brasil as máquinas de procedência norte-americana. O uso e a posse do computador aparecem para as pessoas como um sinal de status social, poder e prestígio. Por isso, empregar a linguagem técnica em língua inglesa também aparece como prova de participação num mundo técnico avançado e conhecido por poucos. Disso resultam duas conseqüências principais: ou os que ignoram a língua inglesa ficam excluídos do uso do computador, que funciona, portanto, como um poder de exclusão cultural, ou os usuários se habituam a empregar palavras como word, input, output, dumps, download, e-mail, delete, insert, homepage, etc. sem ter a menor idéia do que significam. Ou seja, ao empregar com naturalidade um vocábulo cujo sentido lhe escapa e ao reter palavras como se fossem meras operações de um objeto técnico, o usuário tende a não perceber o computador como uma mercadoria produzida e comercializada por grandes monopólios econômicos internacionais que dominam a competição no mercado e impõe sua linguagem e suas leis.

Seja ao sentir-se excluído, seja ao empregar uma linguagem cujo significado é desconhecido e da qual apenas alguns vocábulos são acessíveis e memorizados para fins operacionais, o usuário do computador tende não só a afirmar implicitamente o caráter misterioso do objeto empregado, mas também a ignorar, de um lado, que a exclusão de muitos não é intelectual e sim social (não estão excluídos por serem incapazes de operar tal objeto e sim porque desconhecem a língua em que as operações foram fixadas) e, de outro, que o uso adequado acarreta dependência econômica e cultural.

3. O poder informático.
Na sociedade contemporânea, a posse de informações (científicas, técnicas, econômicas, políticas, militares) é posse de poder. Os computadores são centros de acumulação de informações e por isso são centros de poder.

Adam Schaff explica que a expressão “sociedade informática”, empregada por ele para designar a sociedade contemporânea, significa uma sociedade na qual todas as esferas da vida pública e da vida privada estão cobertas por processos informatizados e por inteligência artificiais que dão origem a novas gerações de computadores. O problema, diz ele, é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza. O problema não está em quem sabe e quem não sabe operar um computador (isso se resolve facilmente com treinamento e todas as pessoas podem operá-lo) e sim em quem tem e quem não tem o poder para armazenar e utilizar informações adequadas. O problema, portanto, sendo de poder, é político.

A esse respeito, escreve Ângelo Soares:
O poder não é único e concentrado em um único ponto, mas é distribuído como uma teia [é isto que quer dizer a palavra inglesa web], uma rede por toda a sociedade. Aqui, aparecem as redes de computadores (vários computadores interligados, na maioria das vezes, através de linhas telefônicas). Cada computador, dessa forma, representa um ponto de concentração de poder e, por meio dessa interligação, eles acabam formando uma “teia” de poder, permeando toda a sociedade. Dessa maneira, a informática pode ser vista como um instrumento que propicia o controle da vida das pessoas devido ao seu alto grau de concentração das informações e à alta velocidade com que elas são propagadas. Em poucos segundos pode-se ter acesso a bancos de dados onde se concentra um número muito grande de informações e obter, de qualquer parte do país ou do mundo, várias informações sobre um determinado assunto ou pessoa.

Isso leva esse autor a apontar os três maiores perigos da acumulação e distribuição de informações.

O primeiro perigo é o poder de controle sobre as pessoas porque, com base em informações parciais e dispersas recolhidas em vários arquivos, é possível gerar novas informações que sistematizam as primeiras e permitem reconstituir hábitos, interesses e movimentos das pessoas, como é o caso bastante simples da reconstituição das ações de alguém por meio das centrais telefônicas, que podem dizer para quem alguém telefonou, quantas vezes, por quanto tempo, etc. Dessa maneira, as pessoas podem ser controladas pelos poderes públicos (como o poder policial e o militar).

O segundo perigo, decorrente da centralização da informação, é a posse de informações por pessoas não autorizadas que entram em contato com informações sigilosas tanto do setor público (informações militares, econômicas, políticas) como da vida privada das pessoas (como, por exemplo, as contas bancárias)

O terceiro perigo está na possibilidade de uso de informações por poderes privados para controlar pessoas e instituições, assim como para causar-lhes dano. É o caso da espionagem industrial e política e da ação dos senhores do crime organizado, que usam as informações para praticar seqüestros, chantagens, assassinatos.

É desse imenso poder que, como vimos, trata o filme Matrix.

A afirmação de que os computadores democratizam as informações não é uma tese verdadeira: a informática, tal como vem sendo praticada, está voltada para a concentração e centralização de informações e para controle da vida e das ações dos indivíduos e não para a difusão democrática da informação. Para o computador operar, ele precisa de dados e da centralização dos dados – este é um fato técnico. A democratização da informação, portanto, não pode provir da própria técnica informática, pois esta é centralizadora. A democratização da informação depende de ações políticas da sociedade e dos governos. É o que se vê nas lutas sociais por legislações que impeçam a invasão da vida privada, a espionagem política e militar, etc. É também o que é ilustrado pelo movimento sociopolítico de resistência e luta das personagens de Matrix.


1. Faça um resumo da segunda revolução.
2. De acordo, com o texto existe um mito na informática, qual é esse mito e o seu significado para a sociedade?
3. Qual é o poder da informática que o texto quer tratar? Explique.
4. De acordo com o texto, existe uma linguagem na informática? Qual é essa linguagem? E o que ela implica?